Coisas que já aprendi no luto da minha mãe: 9 possíveis impactos na sexualidade

by | Jan 30, 2025

Sentia que o meu amor por ela revelava-se cada dia mais falso porque eu não tinha ainda morrido de amor como sempre lhe prometi. Para piorar, não via a hora de atirar o meu corpo nu contra o daquele rapaz com quem, na altura, estava a descobrir o sexo. A minha mãe era a minha melhor amiga. Não conseguia imaginar a minha vida sem ela, nem sabia se queria continuar a vivê-la. E no meio da tristeza mais absoluta, o pensamento de estar com ele – os seus beijos, o seu toque – trazia-me de volta ao êxtase de viver

 

Pensar em sexo depois de perder a minha mãe parecia-me completamente errado e perdê-la também. Essa não era a resposta “certa” à morte da pessoa que eu mais amava… ou seria?

Este é um post sobre luto num blog sobre sexualidade, e a primeira coisa que quero dizer é que são dois temas complexos, vividos de formas únicas por cada pessoa.

Luto e sexualidade partilham uma ligação improvável: ambos envolvem emoções cruas, intensas, e podem tocar na mesma vulnerabilidade que dói, mas também faz sentir vivo.

Nos parágrafos seguintes, vou focar-me na experiência de perder uma mãe enquanto jovem e na complexidade do luto – um processo atravessado por culpa, desejo e contradição.

Justificar essa vivência não deveria ser necessário, mas aqui estou eu, a escrever para que conste que os mortos não nos julgam, são os vivos que o fazem.

 

Perder uma mãe enquanto jovem

Tinha 19 anos quando aconteceu. Estava em casa, no Algarve, era verão e estava rodeada pelos meus melhores amigos. Alguns já tinham perdido alguém, outros tiveram de aprender, tão rápido quanto eu, a navegar a morte. Morremos todos um pouco, mas tentávamos puxar a vida, fosse por silêncios, brindes, músicas ou outras substâncias.

Nunca me vou esquecer da raiva que senti nos olhares de pena de pessoas que apareceram no funeral sem eu sequer alguma vez te-las conhecido. No início, a raiva consumia-me muito. Sentia a injustiça na pele e a necessidade de proteger a memória da minha mãe.

Mas eu não conseguia controlar os burburinhos, os boatos, nem a energia quase natural que vinha da satisfação de quem, de alguma forma, se sentia merecedor de viver mais tempo do que ela, como se fossem donos de uma qualquer razão da vida.

Só perto dos meus amigos encontrei um lugar seguro para chorar por ela, e mesmo isso os outros que não conheciam comentavam. Alguém disse ao meu avô que era uma vergonha ver uma filha a sorrir e celebrar com amigos depois de perder uma mãe, lá está, não a conheciam, nem a relação que tinha connosco, como ela tinha sido quem nos ensinou a brindar e dançar.

Isso só me fazia querer desaparecer ainda mais dos olhos desses.

Os meus queridos amigos organizaram comigo uma festa de despedida num barco, com as músicas e o vinho preferido dela. Foi linda. Todos nos sentimos gratos e orgulhosos por partilhar uma pessoa tão querida e eterna. Depois, fizemos uma viagem a Sevilha, e logo a seguir fui para Lisboa. Não queria parar. Não conseguia dormir. Não conseguia estar sozinha. Não conseguia olhar para as suas fotos. Tinha muita dificuldade em aceitar que, a partir de agora, teria de conviver para sempre com este destino.

Também me sentia muito culpada. Às vezes, apanhava-me a perguntar porque não estava calada num quarto escuro, porque não tinha tomado uma caixa de comprimidos, porque continuava a comer, e porque tinha tanto apetite sexual. Mas, quando me afastava do pensamento de que ela estaria desapontada comigo, imaginava que, no fundo, estaria feliz por eu aproveitar o amor. Afinal, tudo o que a movia na vida era o amor.

Outra coisa que me assombrava era a certeza de que nunca mais ninguém me amaria ou compreenderia como ela.

No sexo, encontrei uma forma de aceder a essa expressão genuína de amor e dor. Por momentos, era como se me lembrasse de como deveria sentir-me: viva, desejada, inteira. Tornou-se o meu principal escape—procurar amor no sexo, procurar ser descoberta profundamente.

Perder uma mãe é sempre devastador, mas no início dos 20 anos é um abalo emocional para o qual não estamos preparades. É uma fase cheia de transições—os primeiros passos nas relações amorosas, as mudanças nas amizades, a questão da carreira, no fundo, a construção de uma identidade.

O vazio que ficou dentro de mim não se limitava apenas à ausência dela. Ele expandiu-se para todas as áreas da minha vida, inclusive a forma como me relacionava com os outros e comigo mesma. Sentia falta de algo tão simples quanto a minha mãe me lembrar do meu valor.

Perder a minha mãe significou perder a minha bússola, a minha principal referência. Impactou a forma como me via, a minha autoestima, a minha relação com a intimidade e com os outros.

Sem essa figura principal, somos como passarinhos bebes perdidos do ninho.

Perder uma mãe nesta idade imatura pode significar que o caminho para compreender os nossos desejos, limites e intimidade saudável torna-se-a uma jornada solitária e confusa.

 

 

luto & sexualidade

Eu, a melhor amiga da minha mãe e as suas irmãs, abraçadas na festa do barco,a celebrar a sua existência e a chorar a sua partida.

 

 

Não da forma que queríamos, mas da forma que precisamos:

o impacto do luto na sexualidade

Queridos fiscais do luto eu tenho algo a dizer-vos: A sexualidade tem, sim, tudo a ver com o luto.

Como aprofundei a cima, o impacto de uma perda tão profunda como a morte de um ente querido mexe com a nossa percepção de nós mesmes, das nossas necessidades emocionais e, consequentemente, da forma como experienciámos a intimidade.

Patti Britton, sexóloga clínica e educadora para a sexualidade, explica num artigo da Mel Magazine em 2018, “o luto está relacionado com a perda de proximidade, de intimidade. É por isso que a nossa libido se manifesta: para preencher esse vazio — literal e figurativamente.”

Outros estudos científicos sugerem que o luto pode intensificar as emoções e os impulsos físicos como parte de um mecanismo de coping. O corpo, em resposta ao stress emocional, procura formas de autorregulação que acalmem o sistema nervoso. O sexo, neste contexto, pode ser uma dessas ferramentas.

Helen Fisher, antropóloga biológica e investigadora no Kinsey Institute, explicou numa entrevista á VICE, que a estimulação dos genitais ativa o sistema de dopamina no cérebro, responsável por sensações de otimismo, energia e motivação. Durante o luto, quando a dor emocional é avassaladora, o sexo, com o outro ou solo, pode funcionar como um alívio temporário, trazendo conforto emocional e uma sensação de ligação à vida, mesmo que apenas por breves momentos.

 

Aqui estão alguns dos possíveis impactos deste processo na sexualidade:

  1. Mudança no desejo sexual: O luto pode diminuir o desejo sexual, tornando a intimidade difícil de imaginar, ou aumentar o desejo como forma de te sentires mais vive e reconectade com o prazer.
  2. Procura de alívio ou conexão emocional: O sexo pode ser uma forma de aliviar a dor e encontrar uma forma mais visceral de apoio emociona.
  3. Sentimento de culpa ou desconforto: Da intimidade, também pode surgir um sentimento de culpa ou desconforto, como se não fosse apropriado procurar prazer durante o luto.
  4. Reafirmação ou reconstrução da identidade sexual: O luto pode levar à reavaliação da identidade sexual, podemos de repente nos encher de sede de novas formas de nos relacionarmos com os outros e com a nossa própria intimidade.
  5. Confusão e dificuldade de autoaceitação: A perda pode gerar uma desconexão com o corpo e os desejos, dificultando a aceitação de nós mesmes por tempo indeterminado.
  6. Sentimentos de indignidade e necessidade/procura por validação: A perda pode gerar a sensação de não merecer amor, levando a uma procura por validação ou aprovação através do sexo, ou relações.
  7. Diminuição da confiança corporal: O impacto emocional do luto pode afetar a confiança no próprio corpo, tornando a intimidade física desconfortável ou difícil.
  8. Repressão ou evitação sexual: Algumas pessoas evitam a intimidade como uma forma de se proteger emocionalmente ou de lidar com a dor do luto.
  9. Mudança na perceção da sexualidade: O luto pode transformar a forma como se percebe a própria sexualidade, levando a uma nova compreensão dos desejos e limites.

Cada luto é único, e como afeta a sexualidade varia imensamente, mas isso não torna nenhuma destas respostas errada ou menos válida. Falar sobre este tema abertamente é crucial para reduzir o estigma e abraçarmos o luto enquanto sociedade.

Uma abordagem mais filosófica

Queridos ficais do luto este não é um reflexo de uma sociedade hipersexualizada, diria até que parece o oposto.

Quando abordamos o sexo e a intimidade neste contexto, muitas vezes caímos na armadilha de o demonizar, reduzindo-o a uma simples procura por prazer, sem considerar a sua complexidade, especialmente quando estamos confrontados com esse tal vazio.

Ver esta dinâmica como promiscuidade é um erro que subestima a profundidade e o potencial transformador da sexualidade.

Quando somos confrontades com algo que ameaça ou encerra a vida (como a morte de alguém querido, uma crise existencial ou um trauma), é natural que surja o impulso de reafirmar a existência.

Freud já pensava sobre isso quando se focou na explicação de Eros e Thanatos, que significam, entre os gregos, o Amor e a Morte — dois princípios opostos que, segundo ele, coexistem em todes nós — simbolizando a dualidade entre vida e morte, a criação e a destruição.

Diante de Thanatos — a consciência da mortalidade, da destruição e da perda —, temos a oportunidade de aceitar a sua presença sem sermos dominados por ela. Por outro lado, Eros, o impulso pela vida, pelo amor e pela criação, é o que nos impulsiona a encontrar alegria, conexão e propósito, mesmo no meio da dor.

É por isto que nem todos morremos de amor; é por isto que conseguimos, numa distração perante tamanha tristeza, ter um ataque de riso ou um cheirinho a paixão.

Este equilíbrio entre estas forças vitais é o que nos permite transformar momentos de sofrimento em crescimento, ressignificando o trauma e encontrando a tal beleza do caos que os artistas tanto gostam. Aceitar a coexistência de Eros e Thanatos não é apenas uma questão de sobrevivência, mas a magia que o ser humano tem em si para florescer, mesmo perante a morte.

 

 

Conclusão sem fim

Como disse no início, quem nos julga serão sempre os vivos, nunca os mortos. E pior do que qualquer comportamento auto-destrutivo que possa surgir nesta fase, será sempre pior para mim aqueles que usam a voz de quem partiu para levar as suas opiniões ao coração de quem os perdeu.

Se, como eu, perdeste a tua mãe, ou talvez o teu pai, um animal, a tua melhor amiga, sabe que este processo será sempre só teu, e só tu poderás saber e decidir qual a melhor maneira de o atravessar. Cada um encontra o seu caminho para continuar, e se há algo que a perda nos ensina é que, no fim, o que conta não é a forma como somos vistos, mas a forma como conseguimos seguir em frente.

Pode parecer um cliché, mas o tempo realmente ajuda, e a ideia de que nada morre, tudo se transforma, pode ser para ti, como foi para mim, um importante ingrediente nesta fase transformadora.

Rodeia-te de quem amas, porque só nos podemos curar onde nos sentimos segures, e sê paciente contigo. Aceita cada sentimento, por mais estranho ou inimigo que te possa parecer, com o maior amor-próprio que te for possível. Acredita que sabes o que é melhor para ti e não desistas de florescer.

 

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